Revista Referência

Infertilidade conjugal passada a limpo

Infertilidade conjugal: aspectos atuais

1 – INTRODUÇÃO

Areprodução em humanos é considerada extremamente ineficiente, quando comparada às outras espécies. A taxa de fertilidade mensal em casais normais está em torno de 20% e a acumulada é de aproximadamente 57% após três meses, 72% após seis meses e de 85% após um ano (MARIANI E SCHWARTZ, 1983). Entre os fatores para essa baixa taxa de fecundidade, a idade da mulher é a principal. A fecundidade começa a diminuir significativamente a partir dos trinta anos, com um declínio mais acentuado por volta do 37 anos (FADDY et al., 1992), chegando a valores mínimos nas mulheres em torno dos 45 anos de idade (ARMSTRONG E AKANDE, 2013).

A infertilidade é definida como a incapacidade de conseguir uma gestação após um ano de relações sexuais frequentes sem o uso de anticoncepcionais, para mulheres até 35 anos, e até seis meses para mulheres com mais de 35 anos. (PRACTICE COMMITEE OF AMERICAM SOCIETY FOR REPRODUCTIVE MEDICINE, 2008). A infertilidade tem sido reconhecida como um problema de saúde pública, e com base na população mundial, estima-se que 72,4 milhões de casais são inférteis (BOIVIN et al, 2007). As mudanças dos hábitos de vida, da expectativa em relação ao tamanho das famílias e das aspirações profissionais, principalmente da população feminina, contribuem para aumentar as estatísticas do número de casais inférteis.

A investigação do casal buscando a causa da infertilidade inclui, no mínimo, a pesquisa da presença de ciclos ovulatórios, da qualidade seminal, da permeabilidade tubária e da cavidade uterina. Quando todos esses fatores estão normais, a infertilidade é classificada como “esterilidade sem causa aparente” (ESCA) (SCHEFFER et al., 2003). As causas femininas são responsáveis por 35% dos casos, e as masculinas por 35%. A associação de causas femininas e masculinas responde por 20% desses casais, e, 10 % dos casos são ESCA. (ROUSSEV e COULAN, 2007; AL-MOUSHALY, 2013).

2 – TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Foi a partir de 1978, com o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê nascido de uma fertilização extracorpórea (in vitro), que as técnicas de reprodução assistida de alta complexidade alcançaram reconhecimento científico e repercussão social, além de estimular o aprofundamento dos conhecimentos em fisiologia reprodutiva, fertilização e desenvolvimento embrionário, culminando com o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução assistida (KIM, 1990).

Todos os procedimentos médicos que envolvem manipulação de gametas e ou embriões humanos in vitro, com o objetivo de aumentar a fecundidade, são consideradas técnicas de Reprodução Assistida (TRA). Podemos dividir, didaticamente, em dois grupos as técnicas de reprodução assistida; as de baixa complexidade, onde não ocorre manipulação de gametas nem aspiração folicular e a fertilização ocorre dentro do corpo da mulher; incluímos nesse grupo o coito programado e inseminação intrauterina (IIU); e as de alta complexidade, onde ocorre manipulação de gametas e embriões e a fertilização e o desenvolvimento embrionário ocorre no laboratório, com posterior transferência do embrião para o corpo da mãe. Dentre elas podemos destacar a fertilização in vitro clássica (FIV) e a injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI).

A fertilização in vitro clássica (FIV) envolve a cultura in vitro em uma placa de oocitos com espermatozoides móveis processados em laboratório. Incubam-se em torno de 100 mil espermatozoides para cada oocito. Foi inicialmente indicada aos casais cujas mulheres apresentavam patologias tubárias. Recentemente, as indicações estenderam-se às mulheres anovulatórias, presença de endometriose, fator masculino, fator imunológico e para os casais que não conseguiram a gestação por procedimentos de baixa complexidade (SCHEFFER et al., 2003).

A técnica de ICSI consiste em introduzir um único espermatozoide no interior do citoplasma do oocito. No início da década de 90, surgiram os primeiros trabalhos que apresentavam resultados satisfatórios com a técnica de ICSI, aumentando as chances de gestação naqueles casais que possuíam fatores masculinos graves (KRUGER et al.,1988; ASHRAFI et al.,2013).

Após ambas as técnicas a comprovação da fertilização é observada pela presença de dois pronúcleos. A etapa final é a transferência embrionária para o útero materno.

Apesar dos avanços técnicos e científicos na área de reprodução humana assistida, estima-se que apenas 30 a 34% dos casais que iniciam um tratamento de infertilidade conseguem um resultado de sucesso, com uma gestação em curso (HAGGARTY et al., 2006; QUBLAN et al.,2006; VOLGSTEN et al.,2010; TOTH et al., 2011; COUGHLAN et al., 2014). Aqui se apresenta o grande desafio atual da reprodução assistida que consiste nas falhas de implantação.

A definição de falhas de implantação embrionária nos ciclos de Fertilização assistida (FIV) ainda é controversa na literatura. Uma recente revisão sistemática com o intuito de avaliar as definições concluiu que as falhas de implantação devem ser definidas como a “ausência de implantação após dois ciclos consecutivos de fertilização in vitro, ICSI ou ciclos de que utilizaram embriões congelados, onde o número acumulado de embriões transferidos foi maior do que quatro embriões no estágio de clivagem (D+3), mais que dois para transferência de blastocistos, e tanto os embriões quanto os blastocistos devem possuir boa qualidade e desenvolvimento adequado para o dia de desenvolvimento” (POLANSKI et al., 2014)

Por outro lado a definição de boa qualidade embrionária está bem estabelecida na literatura, sendo considerado “embrião de boa qualidade” aquele que contem entre 7 e 8 células, < 10% de fragmentação celular e ausência de blastômeros multinucleados e irregulares no dia da transferência (GARDNER et al.,1997; FEIL et al., 2008).

Existem diversas causas e/ou fatores investigados para as falhas de implantação que contribuem para o insucesso da reprodução assistida. A qualidade embrionária, fatores anatômicos, estilo de vida, presença de trombofilias, idade do homem e da mulher e as alterações metabólicas são alguns exemplos. As disfunções imunológicas, principalmente no aspecto da receptividade endometrial, podem ser responsáveis por uma significativa parcela desse insucesso, e são cada vez mais estudadas (URMAN et al., 2005; NOCI et al., 2005; MARGALIOTH et al., 2006; MAKRIGIANNAKIS et al., 2011). Existem evidências na literatura da participação de fatores imunológicos nos casais com repetidas falhas nos ciclos de FIV/ICSI (NG et al., 2002; YOKOO et al., 2006; KALU et al.,2008).

A implantação embrionária é controlada por uma sofisticada interação entre embrião e o endométrio, que começa a “ficar receptivo” para o blastocisto de seis a oito dias após ovulação permanecendo receptivo por 4 dias (dias 20 – 24 ciclo menstrual) e passa pelos seguintes estágios: orientação, aposição, adesão e invasão endometrial (DIEDRICH et al., 2007; SINGH et al., 2011; COUGHLAN et al., 2014).

Previamente à implantação embrionária, o blastocisto mostra evidências de uma polaridade para orientar-se e aproximar-se do endométrio; uma vez orientado (aposição) a zona pelúcida desaparece (DIEDRICH et al., 2012) e o blastocisto entra em contato com a camada epitelial (adesão) e invade a camada mais profunda do endométrio (invasão) (DIMITRIADIS et al., 2010; SINGH et al., 2011; COUGHLAN et al.,2013). Nessa invasão são disparados vários mecanismos de defesa do corpo materno contra as células do embrião, já que 50 % dessas células são de origem paterna, portanto estranhas ao sistema imune materno. Em uma gestação normal esses mecanismos geram um bloqueio fazendo com que o organismo materno aceite esse embrião e não sejam disparados mecanismos para atacar essas células estranhas ao organismo materno, propiciando um ambiente favorável ao desenvolvimento embrionário. Isso ocorre através da ativação de resposta imune humoral e celular adequada, através de imunorreguladores como as citocinas (15). As moléculas do complexo maior de Histocompatibilidade (MHC), que nos humanos recebe o nome de Antígeno Leucocitário Humano (HLA), participam dessa resposta imunorreguladora.

Na gestação, o papel da molécula do HLA é a de promover uma proteção imunológica do feto contra a citotoxicidade das células natural killer uterinas (NKu) através de receptores inibitórios (KIR2DL4), que se ligam ao HLA do trofoblastos, inibindo a atividade citotóxica das células NKu. (VENSTRA VAN NIEUWENHOVEN et al., 2003; CASTRO-RENDÓN et al., 2006; ROUSSEV E COULAM, 2007; GULERIA et al., 2007; PORCU – BUISSON et al., 2007; AMODIO et al., 2013)

Quando o sistema imune materno reconhece como diferente o HLA paterno, há a formação dos anticorpos bloqueadores. Esses anticorpos irão proteger o feto contra a citotoxicidade materna, sendo detectados desde o início da gestação e permanecendo por tempo indeterminado na corrente sanguínea materna induzindo uma memória imunológica específica no caso de uma nova gestação com o mesmo parceiro (BARINI et al.,1998; PANDEY et al., 2004; PANDEY et al., 2005; RIZZO et al., 2011). Os anticorpos bloqueadores (APCA) estão presentes em 10 a 30% nas mulheres saudáveis durante a gestação e a incidência é maior após a 28ª semana de gestação (LASHLEY et al., 2013).

Caso esse reconhecimento não aconteça, ocorre compartilhamento entre o HLA materno e paterno, não havendo a produção dos anticorpos bloqueadores resultando em ativação das células NK e formação de uma resposta imune do tipo T helper 1 (Th1) produzindo determinadas citocinas que irão promover ações deletérias ao trofoblasto. Dessa forma, o reconhecimento da molécula do HLA pelas células NK, determina a formação de uma resposta imunológica T helper 2 (Th2) (MAKRIGIANNAKIS et al., 2011; SINGH et al.,2011).

Os linfócitos T podem ser divididos em dois grupos: os linfócitos T helper (Th), que auxiliam na imunidade celular através da produção de citocinas; e os linfócitos T citotóxicos (Tc), que destroem células infectadas e/ou patógenos. Podemos dividir os linfócitos T helper (Th) de acordo com a produção de citocinas; os linfócitos Tipo 1 (Th1) são responsáveis pela produção de interleucina 2 (IL-2), interferon-γ (INF-γ) e o fator de necrose tumoral-α (TNF-α) promovem uma resposta pró-inflamatória (LEE et al., 2011).

Os linfócitos Th2 promovem a resposta imune humoral, anti-inflamatória e produzem interleucina 4 (IL-4), interleucinas 5 (IL-5), interleucina 9 (IL-9), interleucina 13 (IL-13) e interleucina 10 (IL10) (Ng et al., 2002; Veenstra van Nieuwenhoven et al., 2003; Kalu et al., 2008; Miko et al., 2010; Lee et al., 2011). Vários estudos demonstram que o sucesso gestacional está associado a um predomínio de uma resposta responsáveis pela produção de interleucinas (IL -) IL – 3, IL – 4, IL – 5, IL – 6,IL – 10 e IL – 13 promoverão a produção de anticorpos bloqueadores mantendo a atividade das células NK inibidas (VEENSTRA VAN NIEUWENHOVEN et al., 2003; KALU et al., 2008; MIKO et al., 2010; SAITO et al., 2010; MAKRIGIANNAKIS et al., 2011).

Concomitantemente, o hormônio progesterona, produzido na fase secretória do ciclo menstrual, tem um papel importante na aceitação do embrião e também nas mudanças associadas à produção de citocinas, mediadores de inflamação, as moléculas pró e anti-inflamatórias como a IL- 1 e o fator de necrose tumoral (CASTRO-RENDÓN et al., 2006; VAN MOURIK et al., 2009; ORESHKOVA et al., 2012). Acredita-se que esse efeito imunorregulatório esteja relacionado com a sua ação sobre os linfócitos T, que sobre o efeito alogênico passa a expressar também receptores para progesterona que em altas concentrações passam a produzir uma proteína imunorreguladora a PIBF que ira inibir a liberação do ácido araquidônico inibindo a atividade das células NK e modifica o balanço das citocinas (SZEKERES, 2010).

Resumidamente, podemos concluir que os mecanismos imunológicos envolvidos com as falhas de implantação de FIV/ICSI descritos são um aumento no número de células Natural Killer (NK) e uma alteração no balanço das citocinas Th1 e Th2, com predominância de resposta Th1 (NG et al., 2002; KWAK-KIM et al.,2003; CHERNYSHOV et al.,2010; KWAK-KIM et al.,2010; COULAM E ACACIO, 2012; MARIEE et al., 2012). A resposta Th1 prevalente leva a um aumento da liberação de IL- 2, IL – 12, interferon gama (INF γ) e fator de necrose tumoral alfa (TNFα), estes levam a um aumento nas células NK induzindo a imunidade celular e a apoptose no trofoblasto (KWAK-KIM et al., 2003; VAN MOURIK et al., 2009; MAKRIGIANNAKIS et al., 2011; KWAK-KIM et al., 2013), culminando com a morte embrionário precoce.

3 – IMUNIZAÇÃO COM LINFÓCITOS PATERNOS

Frente a esse quadro, alguns tratamentos imunológicos foram propostos para os casos de falhas de implantação nos ciclos de FIV/ICSI. Um dos tratamentos propostos é a imunização com linfócitos paternos (ILP).

O uso de linfócitos paternos ou de doador surgiu da observação de pacientes submetidos à aloenxertos renais, que após várias transfusões sanguíneas, apresentavam menor taxa de rejeição (SOLLINGER et al., 1984). A função da imunoterapia é a de suprimir a atividade das células NK, favorecendo a formação dos anticorpos bloqueadores (HLA do marido) e uma resposta predominantemente Th2 (PANDEY et al.,2004; YOKOO et al., 2006; KLING et al., 2006a; WILCZY´NSKI et al.,2012).

O papel da ILP nos casos de falhas de implantação foi avaliado em um estudo prospectivo (n= 37 casais) que encontrou um índice de gravidez clinica de 70,3% e de gravidez viável de 51,3% para o grupo tratado (ILP), enquanto no grupo – controle (sem ILP) os resultados foram 45,9% de gravidez clínica e 16,2% de gravidez viável respectivamente (CHECK et al., 2005). Um estudo brasileiro recente também apresentou resultados favoráveis com a ILP para 52 casais com pelo menos 2 falhas de implantação e que se submeteram a ILP previamente a novas tentativas. Nesse estudo, a taxa de gravidez clínica foi de 61,5%, com uma taxa de gestação viável de 57,7% e uma taxa de gravidez com nascidos vivos foi de 96,6%; frente a uma taxa de abortamento foi de 6%, portanto dentro dos limites de frequência de aborto espontâneo para a população geral. (KLIMESCH, 2014)

Esses estudos pioneiros, embora não sejam estudos randomizados duplo-cegos ou controlados, demonstram que a imunoterapia pode ampliar as chances de gravidez até o termo, melhorando os resultados das FIV/ICSI com transferência de embriões, apresentando-se como uma promissora terapia adjuvante para o sucesso dos tratamentos de FIV/ICSI.

4 – CONCLUSÃO

Concluindo, podemos dizer que as técnicas de reprodução assistida vieram para auxiliar os casais que enfrentam insucesso no processo reprodutivo natural. Apesar dos avanços técnicos e científicos, as falhas de implantação contribuem para que muitos casais ainda não consigam a prole que desejam, com prejuízos financeiros e emocionais. O aprofundamento do conhecimento dos mecanismos imunológicos envolvidos nas falhas de implantação permitiu o surgimento de novos tratamentos, entre eles a imunoterapia com leucócitos paternos. Novos estudos, com metodologia científica de maior credibilidade, são necessários para a comprovação dessa modalidade terapêutica, que vem apresentando resultados promissores.

MACHADO, Isabela Nelly

Médica formada pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ginecologista e Obstetra, especialista em Medicina Fetal e Ultrassonografia Geral. Mestre e Doutora em Tocoginecologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora colaboradora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP. Diretora de Pesquisa do Laboratório Allovita – Laboratório de Imunologia da Reprodução (Campinas – SP).