Revista Referência

O que acontece por detrás da cena quando falamos ou pensamos?

THE WAY WE THINK (BLEND), A LÍNGUA E O GRAAL1
O SUJEITO, A MENTE E A INTEGRAÇÃO CONCEITUAL

Nossa proposta, aqui, é mostrar como funcionam correlações entre a mente, a língua e o mundo. O aporte teórico que sustentou a nossa discussão foi principalmente o livro The way we think, de Fauconnier e Turner (2002). Esses teóricos, apoiados em discussões metafóricas, piadas, defendem que a nossa mente está constantemente fazendo blend, ou Integrações Conceituais, e que a mente e o mundo se integram e se desintegram através de processos de identificação ou contrafactualidades. Para mostrar como se dá o blend na mente, fizemos a análise de uma crônica em que são personificados alguns substantivos. Com esta análise, reforçamos, a partir de uma correlação com a metáfora da moeda, que a língua pode ter múltiplas faces, além da “cara” e da “coroa”.

Palavras-chave: Blend; Sujeito; Mente; Língua;  Mundo.

Our purpose here is to show how works the correlations between mind, language and the world. The theoretical framework that supported our discussion was mainly the book The way we think, wrote for Fauconnier and Turner. These theorists, based in metaphorical discussions, jokes, argue that the mind is constantly making blend, or Conceptual Integration, and the mind and the world integrate and disintegrate through identification or counterfactualities processes. To show how works the blend in the mind, we made the analysis of a chronic where are personified some nouns. With this analysis, we reinforce, from a correlation with the metaphor of the coin, that language can have many faces, apart from “head” and “tail”.

Keywords: Blend; Subject; Mind; Language; World.

1 Aqui, trazemos uma metáfora sobre as muitas possibilidades de lidar com a língua: um caldeirão, ou cálice, mágicos.

1 | Introdução

O que acontece por detrás da cena quando falamos ou pensamos? Segundo Fauconnier, nesse processo, ocorrem “[…] construções mentais muito complexas, até mesmo para as sentenças mais corriqueiras” (COSCARELLI, 2005 p. 1). Essas construções são discutidas detalhadamente no livro The way we think (FAUCONNIER e TURNER, 2002), que, a partir, principalmente, da noção de blend, mostra a amplitude de significação que a Integração Conceitual2 pode dar a eventos correlacionais, tendo em vista as mais variadas possibilidades de construções linguageiras, no brotar da linguagem, da mente humana para o mundo, ou do mundo para a mente humana.

blend, segundo Fauconnier e Turner, trata da compressão ou descompressão mental de fatos do mundo, a partir da computação e correlação de fenômenos, numa rede de integração de duplo escopo: inputs e outputs. Essa rede se dá a partir de espaços mentais e é, de acordo com os teóricos citados, denominada Integração Conceitual. Os fenômenos linguísticos em que o blend mais pode ocorrer são, para esses estudiosos, as piadas, tendo em vista as múltiplas possibilidades de cenas metafóricas, embora ocorram em qualquer tipo de pensamento.

Pautando-nos no livro The way we think, principalmente na noção de blend, ou de Integração Conceitual, tentaremos, aqui, fazer uma analogia entre redes construídas a partir dos espaços mentais e a moeda, nas suas possiblidades de faces materiais, além da cara e da coroa. A seguir, tentaremos recorrer a conceitos formados a partir dessa analogia, e aplicá-los a faces conceituais da língua, visando à compreensão de fenômenos no mundo, relacionados a fenômenos mentais e linguageiros.

2 A expressão “Integração Conceitual” é reproduzida no livro The way we think sempre em maiúsculo. Explicaremos logo mais este conceito, que é, no livro, sinônimo de blend.

2 | A linguagem, o pensamento, o blend

Primeiramente, vamos tentar, a partir de Fauconnier e Turner (2002), melhor definir o conceito de blend, ou Integração conceitual, processo que é responsável pela construção e ligação de uma rede de sentidos na mente. Pode-se dizer que o blend, ou a Integração Conceitual, tem um papel central na maneira como pensamos, na forma como construímos sentidos para o mundo, ou como vivemos. Isso mostra que esse processo é o resultado de conexões entre espaços mentais e o mundo, ou vice-versa.

Fauconnier e Turner (2002), sustentam que os sujeitos fazem blend a partir de um sistema de correlações de três instrumentos mentais distintos: Identidade, Integração Imaginação, e que esses instrumentos se manifestam em operações básicas, que se constituem tanto em processos conscientes como inconscientes, a partir de fenômenos cognitivos. A essas operações mentais básicas, responsáveis pela construção do significado dos fenômenos no mundo, esses teóricos chamam de Integração Conceitual. Na condição de sistema de correlações, a Integração Conceitual oferece um caminho de unidade, a partir de uma diversidade de correlações e manifestações particulares de imagens mentais. “A imagem mental passou a ser vista como um fenômeno científico, com surpreendente complexidade” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p. 14).

O objetivo de Fauconnier e Turner, no livro The way we think, é explicar como funciona a complexa integração dos três Is (Identidade, Integração Imaginação). Para Fauconnier, eles representam um jogo, porque a letra I, fonologicamente, tem a mesma forma da palavra olho: (EYE) /aI/. Logo, os Is podem constituir uma metáfora do olho com o qual vemos o mundo. São três entidades em uma única operação de identificação. Entidades distintas, mas com sistema de correlações similar, constituem a língua e até uma moeda. Assim como tendemos a ver o blend, na bebida, a partir de um olhar genérico, com sabor ou unidade distintos, o fazemos com a moeda e com a língua. Mas, isso pode se tratar de uma embriaguez míope, que tentaremos quebrar, a partir de uma construção metafórica, para mostrar que essa unidade, tanto da moeda quanto da língua, se dá a partir de eventos correlacionais, que podem ser discutidos nos “blends” científicos.

Partindo do conceito de imagem mental, tentaremos fazer, então, uma analogia entre redes mentais, que podem ser: Identidade, Integração Imaginação, e as faces de uma moeda, que podem ser: cara, coroa e revestimento lateral, ou estrutura. Depois, mostraremos como esses instrumentos, em situações distintas, uma cognitiva, outra material, palpável, se integram em operações básicas de um sistema de correlações, para, em seguida, fazermos uma analogia com as faces da língua, que podem ser: recursos estruturais, atividade mental e social.

Para reforçar o nosso apoio à metáfora da moeda, trazemos, aqui, um pequeno comentário sobre o trabalho desenvolvido pela professora, pesquisadora em matemática, Bárbara Lopes Amaral, que defendeu a sua tese em 2014, no Programa de Pós-graduação em Matemática da UFMG. A pesquisadora fez, a partir da teoria da probabilidade, um estudo que uniu a matemática e a física quântica. Apoiada no princípio da correlação, a professora explica, por meio de analogia, como eventos correlacionais ocorrem em sistemas quânticos. Para tal, Bárbara Lopes Amaral toma como exemplo uma moeda. “Suponha que você tenha uma moeda e a divida em duas, separando o lado da cara e o da coroa. Você põe cada pedaço em envelopes e os envia a pessoas diferentes. Quando abrir o envelope, a pessoa saberá também o que há no outro envelope. Se o dela contém a face da moeda, o outro terá a coroa. Isso acontece porque os envelopes estão correlacionados e têm um passado comum”, explica a professora e pesquisadora, em entrevista ao Boletim UFMG. Esse conceito indica que há respostas para determinadas perguntas que são relacionadas a outros eventos. Tomando a língua, principalmente como objeto de estudo, toda vez que a dividimos, precisamos buscar em outro lugar algo que já era correlacionado a ela.

Verifica-se, então, que o blend, assim como a metáfora da moeda e a língua, se integram, a partir de uma dialética que vai de sistemas correlacionais físicos a metafísicos. Não é possível dizer onde começam as correlações físicas nem onde terminam, como também não é possível dizer onde começam e terminam as metafísicas. E, tendo em vista esses dois paradigmas, pode-se dizer que compreendemos o mundo, no espaço e no tempo, a partir de dois contextos, o real e o irreal; mas, também, a partir de duas condições, uma que afirma e outra que nega. Nossos processos mentais, por exemplo, dependem, segundo Fauconnier e Turner, do pensamento contrafactual, que seria a convergência de um mundo possível, a partir de um mesmo acontecimento, com uma explicação causal, tendo em vista a Integração Conceitual, isto é, um conjunto de correlações entre o que é e o que não é.

Os teóricos defendem que não é possível, logo, separar o real do irreal, pois são inerentes à vida humana imitar, imaginar, fantasiar: “Nossa espécie tem extraordinária habilidade para operar mentalmente com o irreal, e essa habilidade depende de nossa capacidade para Integração Conceitual avançada” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p. 217). Vemos, então, que a Integração Conceitual parte de unidade mais geral, para apontar correlações específicas e serve para explicar tanto a computação mental quanto a metáfora da moeda ou as faces da língua. “A Integração Conceitual é, por excelência, um instrumento de compressão” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p. 89). Logo, compreendemos o mundo, o outro, a linguagem, a partir do momento em que tomamos consciência de nós mesmos. A compressão se dá, portanto, nos processos cognitivos.

Para melhor exemplificar como funciona a Integração Conceitual, os teóricos de The way we think recorrem a uma piada metafórica. Eles mostram que, numa situação envolvendo, por exemplo, um homem e uma prostituta no Image Club, reportada no jornal Times, as questões sexuais e fantasiosas são muito familiares. O input para o blend é o cenário com uma colegial imaginária e a situação real envolve um homem que foi ao Image Club. Mas, no blend há um professor e uma colegial. Ele só pode fazer sexo com a estudante no blend, porque, na realidade, está fazendo com uma prostituta. Fauconnier e Turner observam que “Fantasia sexual, quer ou não executada, é uma vasta e importante área da sistemática cognição humana […]” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p. 36).

É importante observar que, da obra desses dois teóricos, carro chefe deste artigo, exploramos principalmente o exemplo acima e também a piada “Se Clinton fosse o Titanic, seria ele quem teria afundado o iceberg”, frase que circulou no jornal Washington, D.C. em fevereiro de 1998, quando o filme Titanic era popular e Clinton estava famoso por escândalos sexuais. Na sequência, no item Espaços Mentais, vamos desenvolver esse raciocínio. Ambas as construções, analisadas no livro The way we think, servirão também como parâmetro para trabalharmos, logo mais, o nosso objeto de estudo, a crônica Atentado ao Pudor, de Luís Fernando Veríssimo.

3 | Espaços mentais

Segundo os teóricos que fundamentam nosso estudo, o blend se dá nessa correlação entre os espaços mentais e o mundo; e um espaço mental consiste de elementos e relações ativadas, simultaneamente, como uma única unidade integrada. “Quando nós vemos um tapete persa em uma loja e imaginamos como ele ficaria em nossa casa, nós estamos comprimindo dois diferentes espaços físicos” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p. 113). Temos, aqui, um exemplo de correlação contrafactual. Conceitualmente, assim, podemos pensar a língua e, materialmente, assim, podemos imaginar a moeda.

Embora o tapete persa seja um bom exemplo, para Fauconnier (2005), as piadas são os recursos favoritos dos espaços mentais. Ele e Turner lembram que o ex-presidente dos Estados Unidos, Clinton, teve sua popularidade aumentada depois dos escândalos sexuais e ataques por inimigos, quando foi comparado ao navio Titanic. Diferente do navio, seria Clinton quem teria afundado o iceberg. Os autores explicam que, para compreender a piada, as pessoas precisam abrir um espaço mental sobre o que é o Titanic e um iceberg e outro espaço mental sobre os escândalos sexuais envolvendo Clinton e os ataques que sofreu. A partir desses dois espaços mentais constrói-se um terceiro: Clinton-Titanic: Clinton é tão forte que é capaz de afundar um iceberg.

A contrafactualidade no blend tem dois inputs no espaço mental: um com o Titanic e o outro com o presidente Clinton. Clinton é a contraparte do Titanic e o escândalo é a contraparte do iceberg. Segundo Fauconnier (2002), a situação Clinton-Titanic é uma metáfora, e a história do Titanic e do iceberg é um primeiro input para se ler a situação. O segundo input são os fatos envolvendo o presidente. No espaço do blend, o Titanic-Clinton não afunda, contrariando o que sabemos sobre o navio e as leis da física. Temos aí um produto de nossa atividade mental, um produto da nossa Imaginação. Sabemos que, pelas leis da física, icebergs não afundam, mas, na nossa mente, podemos construir um espaço em que afundem.

Veja que dependemos, então, de uma correlação entre informações visuais e imaginativas. Com isso, verifica-se que as projeções entre os espaços mentais usadas para criar redes conceituais são muito ricas e podem ser de diferentes tipos e envolver relações vitais para construções de sentidos, além de relações como: causa e efeito, tempo, espaço, mudança, identidade, etc.

A partir desses dois exemplos, confirma-se que a linguagem, evolutivamente, institui-se como uma integração de duplo escopo, o mental e o físico. Construímos significados, em nossas mentes, ao identificar elementos e integrá-los a outros já existentes no mundo. Usamos, para isso, identidades que são integradas em processos imaginativos, conforme se pode verificar no exemplo do Image Club.

A partir dessa integração de identidades imaginativas, como propõe o blend, tentaremos também levar esse duplo escopo para outros instrumentos correlacionais, do físico para o conceitual ou do real para o irreal, conforme o exemplo das faces da moeda e sua analogia com faces da língua. Com o seu sistema de correlações complexas e organizadas, assim como a moeda, a língua pode ser dividida em, no mínimo, três faces: a estrutural, a mental e a social. A partir daí, tentaremos confirmar se essa compressão integrada, a partir de uma relação dialética, conforme no blend, na moeda e na língua, contribui para a construção de outros significados no mundo.

4 | Compressão – tempo, espaço

A partir de outra proposição metafórica, um “debate com Kant”, Fauconnier e Turner (2002) mostram como a mente funciona em relação ao tempo/espaço. O debate com Kant se dá numa rede de integração. O filósofo clássico não está presente, discutindo com, por exemplo, um professor, filósofo moderno, mas, no blend, Kant está onde o debate ocorre. “Blending é uma ferramenta de compressão por excelência” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p. 114). A compressão coloca Kant e um filósofo moderno na mesma sala. Dois espaços separados pelo tempo são simultâneos no blend. Isso porque a questão do tempo e do espaço está na base da Integração Conceitual. Aqui, podemos trazer a língua para processos de compressão e descompressão, pensando, lógico, nos espaços sociais. Se a colocamos numa rede de integração social, uso da língua, a compressão se dá como numa unidade, mas se pensamos numa rede de integração acadêmica, a língua em estudo, por exemplo, a descompressão tende a ser obrigatória e podemos ter múltiplas possibilidades de integração. Isso significa que, na metáfora da moeda, a moeda inteira representaria a língua em uso e a sua descompressão, ou a contraparte, a língua em estudo.

Objetivando melhor compreender a língua e a moeda, bem como as suas correlações, recorremos a mais um exemplo trazido por Fauconnier e Turner. Ao tratar dos espaços genéricos, os autores de The way we think exploram, por exemplo, a caminhada de um monge budista e sua espiritualidade. Dois monges que são um só. Duas contrapartes, dois cenários são projetados. Logo, temos dois caminhos, dois monges. Este é um exemplo de blend saliente e intuitivo, principalmente porque há o estranho evento de alguém encontrar-se consigo mesmo: o monge. Como se dá a Identidade? O monge em um input é idêntico ao do outro. Duas identidades em uma só, no mesmo espaço, desintegração e integração, descompressão e compressão. Veja que assim também se dá com a moeda e com a língua. Temos o todo, mas temos também as partes. Podemos escolher se as analisamos a partir de um processo de compressão ou de descompressão.

5 | Integração, o sujeito e a língua

A partir de Descartes (1596-1650), que em suas discussões traz a noção de dois mundos opostos, um do conhecimento objetivo, o mundo científico, e, outro, o mundo intuitivo, reflexivo, ou seja, o mundo subjetivo, Morin (1996) resgata a noção do sujeito (EU) que tanto foi desprezada pela ciência clássica, noção esta que foi, no século XX, banida da psicologia, da história, da sociologia. Morin propõe uma noção biológica do ser, “[…] não nos sentidos das disciplinas biológicas atuais. Eu diria biológica, que corresponde à lógica própria do ser vivo” (MORIN, 1996, p. 46), isto é, bio-lógica = a lógica da vida. Também Chomsky (2006), através de influências do pensamento de Descartes, já estudava a mente como uma propriedade física. O objetivo de Chomsky era estudar a linguagem como se estuda as plantas, o corpo humano. Este teórico entende que o recurso “mental” está no mesmo nível do “químico”, do “ótico”, do “elétrico”.

A partir desses e de outros teóricos, passa-se, então, a conceber o sujeito de maneira científica. Em primeiro lugar, concebe-se a autonomia do sujeito. A noção de autonomia, em Morin (1996), não está relacionada à noção de liberdade, mas à de dependência – conforme propõem Fauconnier e Turner (2002); e a de dependência à noção de auto-organização. Esta noção se liga ao segundo princípio da termodinâmica, que fala que, para ser autônomo, é necessário que se extraia energia do exterior. Isto é, para ser autônomo, é necessário depender do mundo externo. Essa dependência não é só energética, mas informativa e organizativa. Dessa forma, a partir dessa orientação dialética, Morin fala não apenas da auto-organização, mas da auto-eco-organização, partindo do princípio de que a auto-organização é dependente. A noção de sujeito, a partir de Descartes, implica, logo, autonomia e dependência.

Encontramos essa autonomia dependente também nas faces da moeda proposta pela professora Amaral (2014), bem como na analogia metafórica que propusemos para pensar as faces da moeda e as da língua. A moeda, como a conhecemos, tem cara e coroa, mas, se dividida em duas partes, conforme propõe Amaral, passará por um sistema de descompressão e formará dois objetos distintos, porém, sem perder a condição de eventos correlacionais. Da mesma forma, a nossa moeda tem cara, coroa e ainda uma estrutura lateral, que podemos relacionar aqui com a estrutura da língua. Sustentamos, então, que até podemos estudar separadamente todos os fenômenos possíveis que a língua venha a ter, mas não podemos negar a sua auto-eco-organização, ou melhor: a interdependência desses fenômenos.

6 | Para introduzir a nossa análise

Na análise que faremos logo mais, a partir de um texto humorístico, discutiremos esse sujeito empírico, que é biológico, físico, cognitivo, histórico, cultural e científico, e que se integra em suas relações humanas, sociais, se posicionando como EU, no tempo e no espaço. Esse sujeito é aquele que tem identidade e computa, a partir de complexa capacidade imaginativa, mas que também se desintegra numa descompressão que se dá a partir de eventos correlacionais que se identificam na mente e no mundo, e que se auto-eco-organizam no blend.

A partir do processo de análise, tentaremos fazer, da auto-eco-organização, um blend. Esse blend integrará o sujeito empírico, autônomo-dependente, e o fenômeno da língua, recorrendo a um sistema de correlações organizadas, tendo em vista a metáfora da moeda.

Análise do texto Atentado ao Pudor, de Luís Fernando Veríssimo

Atentado ao Pudor (sistema de correlações: personificação de substantivo masculino “pudor”. Temos aqui dois espaços mentais: um para “pudor”, como postura social, e outro para pessoa do sexo masculino, chamada “Pudor”. Há, nos processos metafóricos, uma reconstrução dos papéis)

Luís Fernando Veríssimo (sujeito com identidade que integra fora do texto, mas que é responsável por todos os blends construídos, a partir da história: computa uma rede de identidades e faz integrações, usando a imaginação)

Sempre (tempo contínuo, usado para integração de uma situação no espaço.) que ouço falar em atentado ao pudor, imagino (o narrador integrando dois espaços no tempo) a cena (elemento construtor de espaço, que direciona a atenção do leitor para algo mais que será dito. Oportunidade para construção de espaços mentais tanto pelo narrador como pelo leitor)O Pudor (integração do substantivo personificado) caminhando, digamos pela praia, sofre um atentado (aqui, no input para o blend, temos a praia como lugar onde o homem-Pudor sofre o atentado. Porém, esse homem só existe na imaginação, pois se trata de uma metáfora do substantivo “pudor”). Socorrido por populares é medicado e depois levado à delegacia (apesar de esses lugares existirem, sabemos que não é possível socorrer um ser imaginário em um hospital nem levá-lo a uma delegacia. Para isso, construímos, na mente, uma integração de duplo escopo: um input irreal e um output real), para registrar a ocorrência.

Nova integração. Aqui, o narrador sai de cena e entram as falas das personagens: do Pudor e do investigador.

  • Conte como foi, doutor(há uma compressão do tempo. Naquele momento, ambos precisam computar a cena, o investigador computa o que imagina e o “Pudor”, o que viveu)
  • Eu (volta-se para si mesmo como centro do discurso) vinha caminhando pela praia (fenômeno com marca de espaço e de tempo), despreocupadamente, quando fui alvejado por um seio(o “Pudor”, personificado, traz à cena uma outra personificação: “o seio”. A isso Fauconnier e Turner chamam de categoria estendida. A nova categoria retém todo o significado anterior, mas adquire um ou mais novos significados. O leitor deve abrir um espaço mental para o novo sentido para “seio”, que, no blend, funciona como pessoa. Sabemos, conforme Fauconnier e Turner, que seios não agem voluntariamente, mas, na nossa mente, podemos construir um espaço em que o façam: imaginação)
  • A que distância ele estava?
  • Perto (novo espaço integrado, mas não definido)Foi praticamente à queima-roupa. Ele (input para blend: o seio personificado) apontou para mim e… (aqui, conforme já observamos, o leitor deve computar como seria a ação de um seio personificado)
  • Estava sozinho?
  • Não. Eram dois (abre-se um novo espaço mental para a personificação de um segundo “seio”. A partir dessas duas identidades imaginárias, o leitor deve integrar mente e mundo. Isto é, do irreal para o real. Os “seios” poderiam ser a integração de uma pessoa do sexo feminino).
  • Tem certeza?
  • Eram dois. Aliás, muito parecidos. Poderiam (o futuro do pretérito marca uma contrafactualidade: o real e o possível) ser gêmeos. (nova integração do sentido da piada)
  • O senhor pode descrevê-los?
  • Foi tudo tão rápido… Sei que os dois estavam nus. (sistema de correlações. O leitor pode abrir dois espaços mentais: o real, e imaginar uma mulher nua, ou o imaginário, e computar como seriam dois “seios”, nus, alvejando um homem. O humor, tratando a postura da mulher como um ato obsceno)
  • De que tipo eram?
  • Como, de que tipo?
  • Altos, baixos, gordos… (identidade, imaginação e integração do tipo físico da mulher, ou de um indivíduo suspeito)
  • Não pude notar. Só vi que estavam apontando para mim. Foi horrível! (construção a partir da imaginação. Oportunidade para o interlocutor imaginar uma cena)
  • Acalme-se. Eram brancos?
  • Quer dizer… desculpe, eu… (nesta fala, com a interlocução acima, quando o interlocutor pergunta se eram brancos, fica ainda mais evidente, no humor, a integração da mulher como objeto obsceno, pornográfico)
  • Calma, calma. Procure se lembrar. Isso é importante.
  • Eram dois seios, brancos, aparentando ter uns 18 ou 19 anos (idade: característica mais determinante da personificação. Tendo em vista o caráter do humor, imagina-se a idade da mulher cujos seios estavam à mostra. Aqui, podemos integrar que os seios de uma mulher mais velha não apontariam)Cada um.
  • Algum sinal particular?
  • Não deu para ver.
  • O senhor tem inimigos?
  • Bem, muita gente não gosta de mim (EU), eu sei. Me (EU) chamam de repressivo, de intrometido, de reacionário. Aliás, esse não é o primeiro atentado que sofro (EU).
  • Ah, não?
  • Ultimamente (tempo presente, contínuo – nova integração, novo espaço), não posso (EU) abrir uma página de revista, ligar uma televisão ou mesmo dobrar uma esquina que não sofra (EU) um atentado(o locutor se coloca como uma vítima que se integra com um mundo que a todo momento tenta desintegrá-lo. Os espaços que ele relaciona apontam que os eventos estariam correlacionados nos âmbitos virtual e real) Estou convencido de que há uma conspiração contra mim (EU)(nota-se que o tempo todo pode-se integrar dois espaços mentais para “seios”: um indivíduo invasivo e parte do corpo de uma mulher)
  • O senhor reconheceria (futuro do pretérito – contrafactualidade: o real e o possível. Tempo diferente do momento da fala) os dois seios se os visse outra vez (lugar não definido)?
  • Não sei…
  • Vamos lhe mostrar umas fotos. (primeira pessoa do plural. Integração coletiva)
  • Talvez o senhor reconheça os agressores.
  • Bem, eu … (espaço para construção de integração a partir da imaginação. “(…) enquanto você pensa ou fala, está metaforicamente se movendo de um espaço mental para um outro, e mudando de ponto de vista e de perspectivas” (COSCARELLI, 2005, p. 3).)
  • Temos um catálogo de seios fichados. (reforça a personificação, apontando características sociais: fichados. Relação de “seios” com crime, pornografia)
  • É preciso?
  • O senhor estaria nos ajudando a pôr a mão nos seios. (aqui, pode ser visualizada novamente a postura humorística da narrativa, mas com um cunho erótico: “pôr a mão nos seios” poderia ser uma integração boa ou ruim)
  • Bem que eu gostaria de vê-los algemados (de novo a necessidade da integração de espaços mentais para personificação: não se algema seios). E levados a julgamento (nova personificação. Nesta fala, fica evidente o fato de “os seios” serem uma integração que pode desintegrar a sociedade. Reforça a integração com obscenidade, pornografia, com o crime), como um exemplo para os outros.
  • Então dê uma olhada nestas fotos.
  • Meu Deus(espaço da lembrança, uso da imaginação e ativação de correlações)
  • O senhor quer um pouco d’água? (sentido do humor, com possibilidade de ativação de espaço mental para a pornografia ou o erótico)
  • Obrigado, já passou.
  • O senhor está bem?
  • Estou, estou… (EU) É que ver tanto bandido junto, assim, de uma vez…” (construção metafórica; “bandido” pode ter também uma conotação pornográfica ou erótica, que desestabiliza, desintegra o locutor. Temos também a possibilidade de um sistema de correlações com o machismo. A integração se constrói quando o homem lida com a mulher de forma pejorativa, tratando-a como um objeto promíscuo, ‘perigoso’, pois o “tira do controle”)

7 | Reflexões sobre a análise do texto atentado ao pudor

O texto é construído em torno da personificação de um substantivo abstrato “pudor” e de dois substantivos concretos “seios”, que passam a integrar uma narrativa, crônica, que traz uma compressão do irreal para uma situação real. Trata-se de uma construção metafórica. Há diferentes sentidos que devem ser buscados fora do texto, na mente, e o próprio jogo metafórico da piada mostra as várias contrafactualidades que podem ser estabelecidas, com essa busca. O autor pode estar se apropriando do humor para falar sobre a repressão na época da ditadura; sobre a violência nas praias; sobre as sensações que um homem pode ter ao ver uma mulher nua na praia: objeto do desejo, que pode causar “perigo”; ou apenas se divertindo com a sexualidade. A narrativa nos obriga a abrir pelo menos dois espaços mentais, a fim de computar novos sentidos para “pudor” e para “seios”.

O mapa com o cruzamento de espaços, ou o input para o blend, conecta o “Pudor” como um ser humano do sexo masculino caminhando pela praia; mas os “seios” não podem ser claramente integrados como uma pessoa do sexo feminino, pois os “seios” poderiam ser duas pessoas com comportamento violento, obsceno, pornográfico ou erótico. A escolha do léxico também define o tipo de blend que se vai construir, integrar. O que significa, por exemplo, “ser alvejado por dois seios”? Essa construção, principalmente no blend, é totalmente diferente de dizer “Vi uma mulher com os seios à mostra”. O leitor passa, então, a construir, mentalmente, um novo sistema de correlações, para dar sentido à história.

A história do “monge budista”, por exemplo, citada acima, traz inputs separados no espaço e no tempo, porém, no blend, temos o mesmo espaço e o mesmo tempo. Como se dão o espaço e o tempo em Atentado ao Pudor, de Veríssimo? O espaço e o tempo psicológicos são predominantes, quando é narrada uma trama que ocorreu no passado, com expectativa de solução no futuro. Esses espaço e tempo psicológicos têm também um caráter ontológico, pois podem estar discutindo violência social, a sexualidade masculina, a sexualidade feminina, posturas sociais obscenas, preconceito social.

Já no tempo cronológico há uma compressão de espaços: o da praia, o do hospital, o da delegacia, o da memória, quando se busca, através de fotografias, identificar uma imagem já vista em outro tempo. Percebe-se uma infinidade de compressão de espaços, mas, acima de tudo, de compressão e descompressão de sujeitos, de identidades, integralmente correlacionados.

8 | Considerações finais

Retomando a proposta da Integração Conceitual, colocamos, aqui, o nosso ponto de vista sobre o blend, as faces da língua e sua possível analogia com as faces de uma moeda ou de outros conceitos. Defendemos que a língua, assim como a moeda, além de ter “cara” e “coroa”, tem também outras possibilidades de faces, tendo em vista fazer parte de um sistema de correlações complexas e organizadas. Essas faces, assim como os instrumentos de integração dos espaços mentais (Identidade, Integração e Imaginação), podem ser múltiplas, tendo em vista os nossos pontos de vista sobre a língua.

Essas faces da língua mostram que ela, língua, conforme propõem Fauconnier e Turner (2002), bem como Morin (1996), tem uma gênese constituída a partir da autonomia-dependência. Isso indica que, como no caso da divisão da moeda da professora, separando a cara e a coroa, os suportes para a língua estarão correlacionados por integração, mas, também, por desintegração, pois têm também um “passado” muito bem marcado por uma Integração Conceitual. Logo, as contrafactualidades da língua estarão sempre correlacionadas, mesmo que postas em “envelopes” distintos; e diferentemente do blend, que só se passa nos espaços mentais, as faces da moeda e da língua podem ser experienciadas no mundo real.