Revista Referência

Prazer e (des)prazer em ensinar são temas de estudo

ARTE-EDUCAÇÃO, SUBJETIVIDADE E FORMAÇÃO: um enlace possibilitado pela pesquisa biográfica

Este artigo relata aspectos de uma pesquisa realizada com arte-educadores do município de Camaçari/BA e revelam as inquietações que emergem durante a formação destes sujeitos.  Para isso, muitos foram os teóricos convidados para essa discussão: DELORY-MOMBERGER, SOUZA, GALVAO, CIFALLI, entre outros. O presente estudo tem natureza qualitativa e como tal busca conhecer a realidade sem nela imprimir nenhuma interposição de valores, motivado pela crença na qual o espaço acadêmico se concretiza como o lugar privilegiado para o debate de ideias, isento de preconceitos e proselitismos, rumo a uma formação profissional comprometida com uma discussão ampla e reflexiva acerca da educação contemporânea.

Palavras-chave: Arte-Educação; Pesquisa Biográfica; Subjetividade; Formação.

This article describes a survey aspects of art teachers from the city of Camaçari/BA and reveals the concerns that emerge during the formation of these subjects. To do so, many theorists were invited to the discussion: DELORY-MOMBERGER, SOUZA, GALVAO, CIFALLI, among others. This study has a qualitative nature and therefore seeks knowing the reality without print any interposition of values, motivated by the belief in the academic space as the privileged place for the discussion of ideas, free from prejudice and proselytism, towards a vocational training committed to a comprehensive and thoughtful discussion of a contemporary education.

Keywords: Art Education; Biographization Method; Subjectivity; Formation.

1 | Contexto inicial

“Ouço mil tambores tocando dentro de mim. Sinto um rio gélido correndo em minhas veias. Uma borboleta voando, atordoadamente, dentro de meu estômago, foi difícil organizar meus pensamentos para começar a aula”. Essas foram algumas palavras que resgatei do diário de bordo, sobre o meu primeiro dia de trabalho como arte-educadora. Isso aconteceu no início de 2001, dois meses após de ter concluído o curso de licenciatura em Artes Plásticas, havia sido contratada para dar aulas nas turmas de ensino médio, numa escola privada, de Salvador/BA.

A aula começava às 7h30 da manhã, como na maioria das escolas brasileiras, e lá estava eu, numa sala repleta de adolescentes pela primeira vez. Muitos pensamentos percorriam a minha cabeça: sobre o conteúdo, a metodologia, a didática, afinal, aquele momento trazia muita expectativa. Para minha surpresa, tudo aconteceu diferente do esperado. Quando enfim, eu consegui ser notada, já haviam se passado quase 15 minutos, os alunos, simplesmente, não percebiam a minha presença. Eu era um elemento estranho, insignificante, não era escutada. Eles continuavam a conversar com seus pares, jogar ao celular, correr e brincar, mesmo eu tendo tentado, por diversas vezes, me apresentar e dar início a aula programada.

Foi então, que por intuição, eu decidi que com um silvo iria interromper aquele caos. E com um forte apito, feito com os dedos, consegui chamar a atenção e ao mesmo tempo criar um vínculo com eles. O que para mim, pareceu extremamente violento, para eles soou como moderno. Eles começaram a me olhar e rapidamente foram sentando-se, como se eu tivesse acabado de entrar na sala, prontos para me ouvir. Parecia brincadeira, nem eu mesma sabia o que tinha feito.

Diante dessa perspectiva, o saber do professor se revela limitado e faltante na prática educativa, pois, mesmo que tenha refletido e construído, ao longo do seu processo formativo um conhecimento a respeito do saber-fazer na sala de aula, ele se dará conta que o saber não diz respeito a algo que se repete, mas a um saber em movimento. Um saber que não é tecido a partir do lugar do mestre, mas um saber que é inconsciente, um saber descentrado que conduz o sujeito, antes de ser conduzido por ele (MRECH, 2005).

Talvez, tenha sido este saber descentrado que me impulsionou a uivar vorazmente, num momento em que o programado escapou. E talvez por isso, passei a compreender o conceito de sujeito faltante. Pela ótica da psicanálise o sujeito da falta é o sujeito do inconsciente, se configura sujeito do desejo, constituído pela linguagem que representa o interdito da cultura. Não é por acaso que os professores se sentem tão angustiados e sem saber o que fazer, muitas vezes sem conseguir verbalizar, ou mesmo colocar em movimento o que pensam ou sentem, anulam-se e/ou revoltam-se frente à realidade.

Porém, penso que seria reducionista e ingênuo isolar os impasses subjetivos docentes na questão do inconsciente, pois depois de alguns anos em sala de aula, fui convidada pela Coordenadora Pedagógica do município onde trabalho, Camaçari – Bahia, para assumir a formação dos professores de Artes. Neste momento, tive contato com os meus colegas numa outra dimensão. Passei a escutá-los e ter obrigação de pensar possibilidades de intervenção para auxiliá-los.

Camaçari está localizada 41 km da capital, conhecida como uma cidade industrial. É a quarta cidade mais populosa do estado da Bahia e a segunda maior cidade da região metropolitana de Salvador. Tem grandes riquezas econômicas e naturais. Mas infelizmente, a pobreza é aguda, todas essas riquezas não foram capazes de criar justiça social. É grande o número de pessoas que vivem na periferia da cidade em estado de pobreza extrema.

Decidi então, buscar uma formação para também me auxiliar, foi quando comecei a frequentar como aluna especial do mestrado em Educação e Contemporaneidade, da Universidade do Estado da Bahia, em particular, a disciplina (Auto)Biografias e Histórias de Vida em Formação de Professores.

A biografização se apresentou como uma base epistemológica e metodológica que acolhia a palavra e a expressão artística a partir de uma visão sócio histórica, valorizando as narrativas, possibilitando a experiência de si e revisitando suas origens, dessa forma o sujeito pode resinificar suas relações consigo, com o outro e com o mundo. A biografização remete à configuração da identidade e à utilização de processos indenitários. Tais processos são facilitadores da aprendizagem, e porque não, da formação de professores (SOUZA, 2006); a biografização e aprendizagem biográfica emergem e enraízam-se no curso da vida, como uma maneira que representamos a nossa existência e como contamos para nós mesmos e para os outros.

Assim, inquietada pela minha prática cotidiana, fui impelida à escuta sensível e à reflexão pragmática, pois o quadro que começava a tomar forma em minha frente figurava o mal-estar dos professores de Artes através de um discurso por vezes descompassado, entre as condições de trabalho dos professores deste município e a insatisfação que demonstravam durante os momentos em formação.

Fato inusitado numa formação de professores de Artes, sempre marcada pela alegria e satisfação. Estes sujeitos durante toda sua formação, seja inicial ou continuada, vivem uma ambivalência de afetos, ora prazerosos, posto que o ensino da Arte traz em si a possibilidade de expressão e reflexão, ora (des)prazerosos, enfrentando situações não previstas no cotidiano da sala de aula, que fogem a ordem desejada. Sendo assim, busquei compreender:

  • Como a relação de prazer e (des)prazer em ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano deste arte-educador?
  • Quais dimensões subjetivas do arte-educador estão ligadas ao ato de ensinar?

Para desenvolver esta temática, tratarei de alguns conceitos pertinentes a este estudo, tais como: contemporaneidade, subjetividade, (im)passes, formação; bem como explicitarei o método de pesquisa utilizado para coleta e interpretação dos dados coletados nas entrevistas, sem com isso fazer juízo de valor ou por em suspenso o debate.

Por hora, escutar e falar com os arte-educadores teceu a teia de saber que preencherá as próximas páginas, às vezes com cores vibrantes, outras vezes opacas, ora com contornos figurativos, ora abstratos, e esse diálogo que se articula a cada momento de forma diferente diz também “muito de mim”.

2 | Os (im)passes em educação: revisitando conceitos

A contemporaneidade mostra-se muito complexa – as referências que tínhamos no século XX já não servem mais para compreendermos o tempo atual. Transformações e rupturas são exaustivamente assinaladas. O ponto de referência é o chamado projeto da Modernidade (HENNIGEN, 2006). Um mundo idealizado em que a história é vista como o caminho – linear e contínuo – em direção a um estágio mais evoluído da sociedade e do ser humano; em que se espera que o sujeito – dotado de razão – seja capaz de desvendar os mistérios da natureza e, através de procedimentos científicos objetivos, leve a humanidade ao progresso.

Tanto em termos de vivência subjetiva quanto em relação à almejada busca da verdade universal, a ‘promessa’ não se concretizou. A partir daí analistas da contemporaneidade começaram a lançar mão de conceitos – como o da pós-modernidade1 – para compreender nosso tempo, nossos modos de ser e estar no mundo, nossa possibilidade de produzir (algum) conhecimento.

Em diferentes campos das ciências humanas e sociais constituem-se perspectivas que propõem uma outra forma de produzir ciência em que não se busca uma explicação – externa – para os acontecimentos, para os modos de ser. As noções de cultura, de discurso, de relações de poder e de subjetivação se enlaçam e questões até então tidas como ‘banais’ são problematizadas.

Para Pereira (2008), os professores « sentem-se ‘desvalorizados’, ‘desmoralizados’, ‘desrespeitados’ e, sobretudo, ‘desautorizados’. Não sendo difícil encontrar junto aos teóricos da profissão docente quem respalde essa fala. No imaginário social, o professor nostalgicamente idealizado cedeu lugar a um sujeito cansado, inseguro e despreparado, incapaz de lidar com a diversidade que se impõem.

É neste contexto, que a contemporaneidade se abre para escutar os docentes, e suas falas fortemente carregadas de afetos2. Os professores em sala de aula vão além da transmissão de conteúdos, revestem-se de subjetividades, pois não são vistos apenas no campo do prazer (alegria, realização, satisfação, etc.), mas também no campo do desprazer, como luto, tristeza, desatenção, etc. O professor e o aluno são possuidores da sua cultura e da sua história, desenvolvem relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo, e essas dimensões estão (entre)laçadas na sala de aula.

A banalização deste problema não o faz menor, não é novidade que os professores vêm sofrendo com a falta de reconhecimento e valorização do seu ofício, com a sobrecarga de trabalho e, com a maior de todas as queixas, o desinteresse dos alunos. A estes são atribuídos o ônus da desautorização e desrespeito aos professores.

Tal contingência societal forja um docente que tende a desaparecer, não tanto devido a sua permanência a priori fugaz, por ser uma consciência dividida que substitui o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo, mas devido a um apagamento de si como índice de autoridade (PEREIRA, 2008).

O autor propõe que o professor não esteja preparado para lidar com, o que aqui eu nomearei de, (im)passes subjetivos que se presentificam no cotidiano da sala de aula.

Se tomarmos como base a origem semântica da palavra impasse, ela nos revela uma situação difícil para qual não parece haver saída favorável, no entanto, eu me proponho a trabalhar com o construto (im)passe, entre parêntese, o que na dimensão polissêmica, nos faz pensar que podem haver situações que passam e outras não. Sendo assim, chamo a atenção dos atores (os arte-educadores), não apenas para as suas impossibilidades, mas também para as portas que podem se abrir, neste caso o saber da subjetividade.

SUBJETIVIDADE do latim subjectivus (subicere: “colocar sob” + jacere: “atirar, jogar, lançar”)

Inúmeros pesquisadores dedicaram-se ao estudo da subjetividade a partir das inquietações do sujeito, para Cifali (2004) não se trabalha a subjetividade a partir do “eu” para se conduzir ao “eu”, mas a partir do “eu” para se conduzir ao “nós”. Tratar o “eu” para não ser o centro, mas reconhecer que este é afetado pelo meio e pelas relações. Nesse sentido, o sujeito busca experiências que mise en place seus afetos na dimensão sócio individual, ou seja, promovendo ações onde o sujeito se compreenda e se estruture em relação a si mesmo e ao mundo social.

1 O livro The postmodern condition, publicado por Lyotard, mais do que introduzir um novo conceito no cenário das ciências sociais, teve o mérito de aquecer o debate sobre as transformações que se processavam em nossa sociedade. Passado mais de 20 anos, não existe consenso quanto ao conceito de pós-modernidade, que tem recebido significados distintos e gerado muita discussão: o que para alguns é pós-modernidade, para outros é alta modernidade ou modernidade tardia (TASCHNER, 1999).

2 Tomo de empréstimo duas definições para o conceito de afeto, a primeira de Schneider (1976) «O afeto é, antes de tudo, esta perturbação a ser reduzida para que o aparelho psíquico reencontre um equilíbrio satisfatório», a segunda de Freud (1920) que associa os afetos a ambivalência entre prazer e desprazer, também entendida em termos de aumento (desprazer) e diminuição (prazer) da quantitativa de excitação, o que influenciaria na qualidade da consciência.

3 | Pesquisa biográfica: fundamentos epistêmicos e metodológicos

Em face da natureza qualitativa deste estudo, que tem como intenção revelar afetos, pensamentos e comportamentos, categorias estas incomuns a métodos convencionais, optou-se por desenvolver o trabalho com base na pesquisa biográfica, pois segundo Delory-Momberger (2012):

O projeto fundador da pesquisa biográfica se inscreve na questão central da antropologia social, que é a constituição individual: Como os indivíduos se tornam indivíduos? Questão que convoca muitas outras complexas relações entre indivíduos e suas inscrições e meios (históricos, sociais, culturais, linguísticos, econômicos, políticos) entre o indivíduo e seus representantes, entre o indivíduo e a dimensão temporal de sua experiência e de sua existência.

Dessa forma, o objetivo da pesquisa biográfica é o de inscrever o sujeito num espaço social a partir de suas experiências, dando significado singular a situações de sua existência. Para tal, a dimensão temporal se apresenta como a dimensão constitutiva da experiência humana. Ela que intermediada pela linguagem produzirá escrituras, narrativas.

A narrativa “é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal”  (RICOEUR, 1983, p.17), pois ao criar um enredo, com começo, meio e fim, “a narrativa transforma os acontecimentos, as ações e as pessoas do vivido em episódios, […] a narrativa é o lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e se experimenta sob a forma de uma história” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 39-40), por isso ela é o meio e também o lugar onde acontecerá a operação de configuração3.

3 Termo descrito por Paul Ricoeur como mise en intrigue, realiza-se na e pela linguagem. É a narrativa, enquanto gênero do discurso, que constitui não somente o meio, mas o lugar dessa operação: a vida tem lugar na narrativa e tem lugar como história (DELORY-MOMBERGER, 2012, p 40).

4 | O ato de contar histórias

Advinda de uma grande tradição hermenêutica (DILTHEY, GADAMER, RICOEUR) e fenomenológica (SCHAPP, SCHÜTZ, BERGER & LUCKMANN), a pesquisa biográfica como toda pesquisa é orientada por aquilo que é pesquisado, não está dissociada de um projeto, nem de uma problemática, constitui um eixo de reflexão ao mesmo tempo epistemológico e metodológico, bem como um movimento de práticas sociais de pesquisa e formação. Dessa forma, o ato de narrar a sua história de vida, possibilita ao sujeito organizar-se num constante diálogo interior a partir dos momentos de reflexão e de formação; pois põe em evidência as experiências que construiu ao longo da vida.

Para Morin (1980), a definição de história de vida mobiliza o indivíduo vivo, ao mesmo tempo intensivamente, em seu lugar de origem, e extensivamente, em sua totalidade de biosfera. É essa complexidade que devemos agora encarar de frente. Esse é um processo que busca produzir por si mesmo sua própria identidade. Pineau et Les Grand (2002, p. 15), afirmam que: “as histórias de vida, aqui definidas como busca e construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais, envolve um processo de expressão e experiência”essa definição alarga o território das histórias de vida, aborda um processo humano, um fenômeno antropológico.

Nesse contexto, cabe detalhar que fazer da vida uma história passa pelas três razões descritas por Pineau et Les Grand (2002, p. 109-112):

  • Agir, compreender, mas também emancipar-se – essa trilogia de finalidades de ação, de compreensão e de emancipação começa a se consolidar teoricamente, de modo perfeitamente heurístico, na formação de adultos, com a distinção de Habermas (1976) entre três tipos de interesse de conhecimento: o técnico, o prático e o emancipador. O último deles, em particular, vai além da emancipação política no seu sentido restrito, identificando-se com a libertação relativa operada pela tomada de consciência crítica e reflexiva dos determinantes existenciais por meio de sua expressão.
  • Adquirir sua historicidade – buscar compreender o significado da sua própria história, à sua construção, e não apenas à história dos outros. É fazer jorrar a fonte, num sentido temporal desde a origem.
  • Ter acesso a um presente histórico singular – o surgimento desse presente singular estabelece, de modo sincronizado, um contato direto com os fatores determinantes da existência.

5 | A entrevista na pesquisa biografica: um momento singular

A entrevista na pesquisa biografica é entendida como um momento singular. Afinal, a entrevista é um dos instrumentos básicos nas ciências sociais e, de modo especial, na educação. Os pesquisadores, por vezes, usam esse instrumento de forma abusiva, na medida em que as perguntas são elaboradas de forma capciosa e respondidas conforme o desejo do investigador. Um dos aspectos fundamentais da entrevista na pesquisa biografica é a interação, a mediação, e deve haver um clima de reciprocidade entre quem pergunta e quem responde. Faz-se necessário, portanto, que o pesquisador (ou estudante-pesquisador) propicie um laço de acolhimento e diálogo a fim de captar a fala desejada e não desejada.

No meu trabalho, de forma mais específica, elaborei um roteiro no qual se revestisse de sentido o diálogo entre o entrevistador e entrevistado. Os temas abordados foram:

  • Processo de escolarização;
  • Escolha da carreira e formação inicial;
  • Formação continuada;
  • Relação com o trabalho cotidiano;
  • Perspectiva para o futuro profissional.

De posse desse roteiro, busquei os arte-educadores para agendar o horário de cada entrevista, foram aplicadas individualmente, com duração aproximada de 1h, sempre no espaço escolar. Este foi escolhido por propiciar maior conforto aos professores e oferecer um ambiente que garantia a concentração e a privacidade. As entrevistas foram gravadas e transcritas para posterior análise.

Foram cinco os arte-educadores que colaboraram com esta pesquisa, quatro do sexo feminino e um do sexo masculino, eles pertencem ao ensino fundamental – Anos Finais. Aqui serão caracterizados por nomes escolhidos de forma aleatória, guardando especificidade de gênero.

A seleção desses professores deu-se após consulta ao cadastro de professores de Artes do Município de Camaçari, em acordo com a Secretaria de Educação. Os critérios estabelecidos pela SEDUC4 foram que, prioritariamente, poderiam participar os professores que tivessem 40h de trabalho semanais no município e que as entrevistas não acarretassem prejuízos para a dinâmica escolar. Sendo observado todos estes critérios, os cinco professores foram contatados e aceitaram participar na condição de sujeitos da pesquisa biográfica5.

4 SEDUC – Secretaria de Educação de Camaçari.

5 Os formulários de consentimento estão arquivados, sob a responsabilidade do estudante-pesquisador.

6 | Interpretação das produções biográficas

Em sentido amplo e diversificado, o conceito de ciência (do latim scientia, traduzido por “conhecimento”) se refere a um conhecimento ou prática sistemática. Em sentido estrito, ciência refere-se ao sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico, bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de pesquisa.

Pesquisar é procurar resposta para uma questão. Em se tratando de Ciência (produção de conhecimento) a pesquisa é a busca de solução a um problema que alguém queira saber a resposta. Não é conveniente, nesse caso, dizer que se faz ciência, mas que se produz ciência através de uma pesquisa. Pesquisar é, portanto, o caminho para se chegar à ciência, ao conhecimento.

A evolução do pensamento científico nos apresenta a expressão Ciência da Educação, que para Mialaret (2006) se constitue ” por uma disciplina que estuda as condições de existência, de funcionamento e de evolução da educação”. Trata-se de uma nova realidade, no qual o estudo científico não pode ser realizado sem que se conheça o campo em que se pretende intervir. A Ciência da Educação aparece, portanto, como um conjunto de abordagens científicas de um real pedagógico, que marca a passagem do absoluto, ou seja, da Pedagogia enquanto prática educativa conservadora, para o plural, onde a Ciência da Educação se apresenta como um campo de conhecimento sobre a problemática educativa na sua totalidade e historicidade e, ao mesmo tempo, uma diretriz orientadora da ação educativa.

Assim, uma pesquisa é, antes de tudo, orientada por aquilo que é pesquisado; no caso deste estudo a abordagem biográfica ao escutar os arte-educadores, põem em foco as características singulares destes sujeitos. Isso me faz crer que esta perspectiva é a mais apropriada para dar conta das dimensões subjetivas e produtivas da formação docente, pois segundo Suárez & Dávila (2012, p. 366) “toda narrativa biográfica supõe em si mesma interpretação, construção e recriação de sentido, leituras de mundo e da própria vida”, quando narram suas experiências, os professores descobrem sentidos parcialmente ocultos ou ignorados.

Dessa forma, procurarei esboçar algumas interpretações, reflexões, inquietudes e sensações acerca das produções biográficas dos sujeitos pesquisados. Em outras palavras, buscarei fazer uma leitura concisa, dentro do amplo campo da subjetividade docente, tentando articular a problemática deste estudo e as experiências de formação dos arte-educadores de Camaçari/Bahia.

Portanto, para que essa construção de saber e conhecimento sejam possíveis, eu retomo o as questões que problematizaram este estudo:

  • Como a relação de prazer e (des)prazer em ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano deste arte-educador?
  • Quais dimensões subjetivas do arte-educador estão ligadas ao ato de ensinar?

Para começar a pensar essas questões eu apresento os conceitos de prazer e desprazer que foram mais finamente elaborados na obra freudiana em 1911, e designam dois princípios que regem o funcionamento do aparelho psíquico. O princípio de prazer é o propósito dominante dos processos inconscientes (processos primários), isto é, busca proporcionar prazer e evitar o desprazer. Eles foram a priori pensados, pois eu acreditava que uma das questões que concretizavam o (im)passe subjetivo dos professores de artes era o fato deles não conseguirem organizar seus sentimentos e desejos frente ao seu trabalho cotidiano, ao ato de ensinar.

No entanto, os cinco professores que compuseram o corpo deste estudo, fizeram emergir duas categorias interpretativas distintas, pois ao dar forma e nome aos seus pensamentos e sentimentos eles deixaram a dimensão inconsciente e passaram a dar significado as suas experiências, ou seja, através de suas narrativas biográficas eles mise en place seus percursos de vida singular, conscientemente. O quadro a seguir indica como foram subdivididas e relacionadas às categorias.

Quadro 1: Categorias interpretativas

Categorias Interpretativas

Ambivalência Dimensão afetiva: vínculo com o aluno e com a aprendizagem.
Idealização do aluno e do ato de ensinar.

Desilusão Condição de trabalho.
Imagem, prestigio, valorização da disciplina.

Ambivalência

A ambivalência se caracteriza pela presença simultânea em relação ao mesmo objeto de tendências, atitudes e sentimentos conflitantes. Em Ornellas (2005, p. 195), ela pode ser sentida em três áreas: Voluntário – por exemplo, o sujeito não quer comer e comer; Intelectual – o sujeito afirma simultaneamente uma proposição e o seu oposto; Afetiva – ama e odeia na mesma circunstância a mesma pessoa. Para Chemama (1995, p. 11), “É uma disposição psíquica do sujeito, que se sente ou manifesta, sentimentalmente, dois sentimentos; duas atividades opostas em relação a um mesmo objeto, a uma mesma situação”.

Nesse sentido, os professores, durante as suas narrativas, fizeram notar sua postura ambivalente ao descreverem o bom vínculo afetivo que têm com os seus alunos e com a aprendizagem deles, e ao mesmo tempo o desencanto quando comparado à idealização do aluno e do ato de ensinar.

Desilusão

A desilusão caracteriza-se como um estado em que o sujeito se acha decepcionado/frustrado frente a suas idealizações. Para Guist-Desprairies (2003, p. 73) “é um processo inerente e necessário a evolução psíquica, a desilusão é uma renúncia de algum conteúdo idealizada que não cumprir sua função de apoio”. Na maioria das vezes como uma decepção manifestada por uma interpretação persecutória de uma exigência da realidade.

Em inúmeros momentos, os arte-educadores de Camaçari, concretizaram os (im)passes subjetivos através do estado de desilusão. De maneira geral, os profissionais da educação brasileira, vivem um momento de exigentes reflexões sobre a esfera das condições de trabalho que os professores vêm enfrentando. A falta de reconhecimento e prestígio social os tem colocado numa situação de compadecimento e sofrimento.

Os professores têm características especiais de vulnerabilidade e importância, provavelmente são essas ambiguidades não resolvidas a respeito de seu papel na sociedade, que qualificam o estado de desilusão, pois sentem-se enevoados entre herói e subalterno, o que, de certa forma, o fazem síntese das contradições do sistema social. Nesse discurso de queixa, de mágoa, de ressentimento, e por que não, de dor, os professores apresentam-se embaraçados e impedidos de concretizar seus ideais.

7 | A importância das dimensões subjetivas da experiência

O presente estudo reflete sobre a fertilidade epistemológica que se enquadra numa linha de investigação entre educação e biografização. Neste sentido, Josso acrescenta “o imaginário biográfico em ação conquistou, então o seu lugar o que falta desenvolver uma reflexão profunda sobre essa imensa produção com finalidades ‘educativas’ diversas”.

Desse modo, desafiei-me a pensar os (im)passes subjetivos no mundo contemporâneo, entendendo que a subjetividade se dá a partir da capacidade de si situar a si mesmo em relação ao outro. Assim o sujeito fala e interpreta a vida, pois segundo Passeggi (2013) “não há vida humana sem narrativa, porque não há vida sem história”.

De acordo com Barbier (2011, p. 74), “a formação é uma ação na qual o sujeito se reconhece, a partir da sua experiência profissional e/ou social e se engaja”. As queixas cotidianas dos professores envolvem incertezas e são marcas registradas da profissão docente. Elas nos dizem sobre a existência de outras dimensões que devem ser levadas em conta, não só o que é objetivo, mas sobre o que está para além do âmbito da razão, onde a formação de professores é central. Afinal de contas, a formação é um momento especial na construção do sentido e no desenvolvimento da reflexão entre os professores.

Durante o tempo em que convivi com os arte-educadores de Camaçari, experimentei angústias e aflições, encantos e desencantos, persistência e vontade de desistir da luta. Percebi que sofrem, que em suas faces repousam as asperezas do trabalho docente, mas que nesta mesma face estampam a graciosidade da esperança e o crédito que depositam em sua profissão.  Talvez por isso, outras questões tenham surgido durante o percurso e possam se desdobrar num prolongamento dessa pesquisa: Como os professores podem dar forma as suas experiências? Por que a maioria os dispositivos de formação não estimulam a dimensão subjetiva do professor? É possível a formação de professores explorar as múltiplas linguagens expressivas (oral, corporal, imagética, etc)?

Esta pesquisa não se esgota, ao contrário põe em movimento a interlocução de saberes, dessa forma, espero ter permitido a reflexão nas dimensões subjetivas do exercício da docência, a fim de promover um efetivo engrandecimento do professor e consequentemente do aluno, pois além de construir o conhecimento, este deve ser preparado para produzir a sua própria consciência, que dialogará com um amplo horizonte repleto de possibilidades.

 

Cláudia Bailão Opa

Mestre em Educação, Formação e Intervenção Social pela Université Paris 13 – Cité Sorbonne (2013). Integra a Associação Internacional de Pesquisa Biográfica Le Sujet dans la Cité, Paris/França